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  • Foto do escritorGabriely Di Folco Rocha

A primeira flor de Hiroshima


Me disseram para observar essa data, esse lugar. Não parecerá especial, disseram, mas tenha paciência. De certa forma, é aqui que começa. Tudo o que vejo é uma cidadezinha japonesa, que segue vibrando, apesar da guerra. Crianças correm para acordar os irmãos que ainda dormem, homens e mulheres estão indo trabalhar.

Realmente, não passa de um lugar pacato, mas eu adorei. Serei feliz aqui. Pairo um momento junto aos pássaros. Somos tocados pelo vento das sementes e dos tufões. Apesar disso, sinto que eles não precisam se preocupar. Estão preparados.

Um menino chama minha atenção. Deve ter uns onze anos, e descubro, pela sua irmã, que se chama Shozo. Seu sorriso contagia. As aulas acabaram de começar, e ele ainda tem muito o que aprender. É a pessoa certa, sinto, mas não a hora.

Observo Shozo mais um pouco, pomposo em suas vestes novas. E então, um avião perpassa meu corpo fluido. Ele passa uma aura diferente, muito fria e estranha nesse lugar alegre. 15 minutos depois, vejo que é ele o que me disseram para observar. Seu pequeno pacote já está descendo no ar.

Shozo percebe, e aponta para aquela coisa frágil. A mãe, alarmada, enfia-o em uma caçamba, e o menino se debate, sem entender. A terrível e bela imagem chega antes do som ensurdecedor. Pessoas gritam, mas queimam no ato. Meu menino chora, paralisado, sem entender.

Já se passaram cinco horas, e no subúrbio de Hiroshima, Shozo permanece encolhido. As últimas horas foram do mais puro terror. Não sei como me afeiçoei tanto a esse menino em tão pouco tempo, mas a raiva inflama o meu peito etéreo.

Ele só sai dali, acabado, um dia depois. Grita por quem o ouça, e a irmã mais velha aparece. Eu deveria sair a procura de outra pessoa, que me queira, mas me sinto preso a eles. Por isso, acompanho o frágil garoto se tornar um homem cujas cicatrizes eu vi formar.

Os pais, mortos. Amigos, familiares e professores também. Os irmãos usam da força um do outro, mas ela não tem sorte. Morre 6 meses depois. Meu menino, agora sozinho, é encontrado pela Yazuka, e vê nela a única chance de continuar lutando.

Ele agora já tem 20 anos e eu vejo que tudo é mais terrível para ele, que viveu, do que para quem só sofreu por um instante. Mas parece que a felicidade se aproxima, pela primeira vez. Ela vem em forma de menina, e é realmente bonita.

Sinto que essa mulher, Sakura, realmente o ama, e vejo minha hora de florescer se aproximar. Porém, tudo descamba novamente. O pai dela descobre de onde ele vem, e proíbe que a maldição daquele lugar morto chegue em sua família, fugindo com o último amor da vida do meu menino.

Sim, eu percebo que não terei outra chance, mas não posso abandoná-lo. As cicatrizes que ele carrega não se limitam aos dedos, e parecem, agora, a única coisa em seu ser. Não posso deixá-lo.

Vejo ele se livrar da máfia e as rugas cavarem o seu rosto, mas eu continuo com ele. Meu menino, agora um velho que vê o milênio passar, ainda visita a cidade que se tornou um necrotério. Apesar de meu corpo vibrar com as injustiças que a vida tece para ele, vejo que ele já não sente raiva, apenas saudades, por mais que desconheça essa palavra.

Percebo, agora, que na minha ânsia por nascer, ignorei o que ele realmente sentia. Finalmente compreendo que não virei como esperava, do ventre de uma mulher, mas sim do jeito que ele precisa. Esse senhor, que já tem 70 anos, não quer vingança ou desculpas, mas o renascimento do seu lar.

Trazida do bico dos pássaros que finalmente voltaram a essa carcaça de cidade, eu surjo. Nesse 59° aniversário da tragédia, vejo ele dar um sorriso como o do menino que conheci há tanto tempo. Essa pequena flor que sou é como um universo que se abre para ele.

Por fim sei meu nome: Fuyuki*.


*Esperança


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