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  • Foto do escritorGabriely Di Folco Rocha

Beija-flor vermelho


Vinha planejando aquele momento há tempos.

Seu corpo acordou antes da alma. Primeiro os dedos dos pés estremeceram e o movimento, meio transe meio encanto, foi subindo pelas pernas. Como que num samba que só as estrelas ouvissem, o movimento se alastrou até que foi afastado pelo espreguiçar dos braços perolados sob o luar.

A moça saboreou o silêncio. Ela parecia brilhar, naquela madrugada.

Ante sua beleza tranquila as próprias estrelas recuaram, e Vênus e pôs no mesmo instante em que seu espírito luminoso atingiu as pedras do calçamento.

Os passos eram leves como sua face. Os cabelos cascateavam em cachos grossos sobre as costas nuas que tinham a cor da noite e o brilho da lua. O perfume de sua pele inebriava os amores-perfeitos, quem pendiam da sacada, apaixonados.

Naquela noite, tudo parecia correto.

O mormaço, tão próprio do lusco-fusco goiano, a acompanhou por toda a estrada, soprando manso como só ele faz. Um único beija-flor-vermelho a observava, admirando com os olhinhos gentis sua capacidade de flutuar sobre os paralelepípedos octogonais que ponteavam o jardim, como que pulando de uma nuvem à outra.

Logo os paralelepípedos deram lugar as rochas da Chapada. E ela continuou, tranquila, sem nunca olhar para trás. Às vezes tirava de um embrulho mínimo uma cereja, tão doce e suculenta que não se notava seu recheio amargo, e a encostava aos lábios, distraída.

Nem um único calango ou teiú a perturbou, e até as árvores pareciam dormir. Ela seguia seu caminho. Por entre o Cerrado e as trocas de corujas. Através dos caminhos que seus antepassados percorreram. Ouvindo somente o murmurar da água e de sua própria mente. Sempre em frente, sempre em frente.

Ao avistar seu destino, um sorriso tímido brincou em seus lábios bem desenhados. Uma rocha lisa e gigantesca de quartzo despontava para o Infinito estrelado. Entre as sombras da Chapada e o silêncio ensurdecedor do vazio, ela perdeu o fôlego e a razão.

Por um segundo se esqueceu de quem era. Esqueceu da beleza, do perfume e do mormaço, do sorriso e do encanto. Só havia Vazio.

Então viu a banheira.

Alva e imponente, recortava a abertura para um outro plano. Exatamente o que queria, exatamente o que precisava

Despiu-se languidamente. Ainda era noite alta; o tempo era seu e se esquecia do que era pressa ao deleitar-se com a Beleza. Só importava aquele instante e, num átimo, o próximo como uma doce sinfonia que se recusasse a alterar.

Entrou na água morna com graça. O gerador, montado há uma, duas, ou mais noites, repousava ao seu lado. Os vapores se confundiam: sabão, pele, estrelas... e, por meia hora, ela pareceu adormecida ou embriagada pelos gases. Uma guaracava curiosa a observava da copaíba mais próxima, o topete inclinado à esquerda, como quem não entendesse.

Saiu da dormência como fizera antes, num estranho samba ou maracatu. Mas dessa vez a mente não voltou. Ficou ali, na água convidativa, por mais tempo do que se poderia contar. Sorte que já não era necessária: estava tudo muito bem ensaiado.

Sobre a pedra lisa ela arrancou, com cera, os pelos. Ali lixou as unhas com primor, pintando cada uma com um tom entre o rosa e o violeta, exceto os mindinhos. A esses sobrou o preto das veias de carvão que brotam da terra, em homenagem as promessas rompidas, putrefeitas.

Deixou que os cabelos secassem livremente, formando uma densa nuvem em volta de seu rosto luminoso. Em contrapartida, tudo era embalado por um cântico tão doce e sofrido que até mesmo a guaracava se entristecia com a poesia daquilo tudo, a Chapada de repente prosaica frente a uma vivacidade tão linda.

Com uma roseira nascida na beira do precipício, solitária numa única rachadura da rocha, ela furou o anelar esquerdo, sem nem titubear. Recolheu as gotas rubras numa caixinha de alianças extremamente adornada, feita de ouro-de-tolo. Misturando-as com óleos e manteiga de cacau, fez um batom rudimentar, umedecendo os lábios. Cada movimento era tão convicto e sincronizado com o canto triste que seria impossível contestá-lo.

Por último, delineou os olhos e colocou um vestido tão leve, mas tão leve, que parecia feito de nuvens. Sua pele estava fresca, mas a cabeça permanecia enevoada.

A esta altura, o céu já começava a clarear, assumindo a cor fingida de sua boca. Os dentes cortaram a última cereja. Os pés descalços, sua última relação com o mundo real, a dirigiram para a borda da ‘mesa’ para assistir ao espetáculo.

Mas ela deu as costas à Chapada dos Veadeiros. A primeira brisa da manhã brincou com seu cabelo e seu vestido, e ela deu o primeiro sorriso genuíno.

Enquanto caía, uma lágrima solitária fez o rímel escorrer pela bochecha. Mas seu coração sorria.

Libertou-se antes de chegar ao chão.


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