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  • Foto do escritorTropa das Quitérias

Até quando?

Uma crônica sobre genocídio de populações indígenas.

Charge. Representa um português e um indígena morto por espada em primeiro plano. Quase toda a figura está em preto e branco, exceto o sangue, copioso, do cadáver em destaque. O colonizador está sentado de costas e molha uma pena no sangue. À sua frente, um livro onde se lê "história" escrita à sangue. O sangue indígena segue para o mar, e, ao fundo, se veem caravelas.
Charge que representa o ditado: "A história é contada por quem vence". Por Carlos Latuff.

Descrição: Charge. Representa um português e um indígena morto por espada em primeiro plano. Quase toda a figura está em preto e branco, exceto o sangue, copioso, do cadáver em destaque. O colonizador está sentado de costas e molha uma pena no sangue. À sua frente, um livro onde se lê "história" escrita à sangue. O sangue indígena segue para o mar, e, ao fundo, se veem caravelas.

Falar dos corpos indígenas é falar da história do Brasil, dos corpos das mulheres no Brasil e da miscigenação, que é falada como uma coisa até romantizada. Raquel Kubeo

Desde que saí das nossas terras, é como se fosse outra Ci¹. Por esses tempos li sobre os charrua, etnia que já habitou o sul do Brasil e Uruguai. Grupo indígena que ainda praticava antropofagia e sacrifícios no século XVIII, quando entraram em contato com os brancos. Mesmo esperando uma tragédia, me choquei. Depois do massacre, num episódio conhecido como “Matanza de Salsipuedes”, sobraram apenas 4, que foram expostos em circos europeus. A história completa é tão trágica que me levou a tentar entender historicamente o genocídio desses muitos povos, tão diferentes entre si, unidos apenas pela opressão.

1500, é o ano em que dizem que tudo começou. Época de grandes navegações que levaram o velho mundo a terras deslumbrantes. Não apenas terras virgens descobertas, mas também as mais variadas riquezas. Falando dessa maneira, é lindo e extasiante. Daria um lindo romance. Daria, se fosse de fato descobrimento, mas não é. Essa história está longe de ser perfeita.

Uma destas terras, a que hoje conhecem por Brasil, abrigava mais que riquezas. Era o lar de pessoas, não dez ou vinte, mas 5 milhões. Nossos traços e culturas eram quase tão ricos quanto nossas florestas. Milhões de vidas já chamavam este “yby²” de lar. Entretanto, o europeu nos enxergou de outra forma. Julgou-nos amorais, primitivos, selvagens, atrasados. Disse, que os nativos não tinham alma. E então, a aniquilação... Até quando o papa afirmou que poderíamos ser salvos, a catequização apenas facilitou o já iniciado trabalho das pestes e dos traficantes. O genocídio cresceu. Escravizados e catequizados, ruímos de dentro pra fora. Por doenças fatais e desconhecidas, trabalhos forçados, estupros e vítimas dos aclamados bandeirantes; hoje vistos como heróis por desenhar a sangue as fronteiras do maior país latino-americano. Fomos as maiores vítimas da ditadura, e os corpos de 8 mil Parakanãs continuam perdidos.

Já faz muito tempo. Quase um “era uma vez...”. Não tem mais bandeirantes, mas garimpeiros, que invadem terras demarcadas e matam com a mesma frieza e ganância dos pioneiros. A igreja chegou a admitir nossos direitos, mesmo tendo as mãos sujas com o nosso sangue. Foram criadas reservas indígenas e legislações protetivas, mas há sempre um grileiro... ignoram fronteiras e limites. A ditadura acabou, mas os corpos continuam sumidos e se juntam a novos. Até comemoramos o dia do índio, de volta à caricatura do bom selvagem.

Vivemos em um mundo doente, já refletido nos espelhos com os quais os portugueses ‘compraram’ o Brasil. Não somente a terra, mas nossas almas e nomes - antes kaigangs, tupis, charruas, guaranis, ianomamis, tupiniquims e xavantes reduzidos à brasileiros, traficantes de pau-brasil na definição da língua imposta. Até o editor que uso sublinha de vermelho nossas palavras.

O extermínio se deu tão rapidamente que hoje somos apenas 0,5% dos brasileiros, temos nosso viver ameaçado a cada instante. Sendo ‘negros da terra’ não fomos ‘repostos’ aqui como os africanos, e assim que se viu que não servíamos de escravos, veio a matança. Hoje, nossa herança é tão desbotada que muitos dizem, sem medo, que quando sai da reserva o “índio” deixa de sê-lo.

Qual é a opção? Morrer de fome, cercado por monoculturas? Pegar fogo junto à floresta? Receber um tiro como a onça pra ter a história contada entre risos num churrasco? Se ainda hoje saímos de nossas aldeias e temos caçada a identidade é para não perder também a vida.

A identidade, para nós, indígenas latinos, está muito ligada à terra e ao pertencimento. Nossas culturas (principalmente quando xamânicas) dependem da conexão com a natureza - assim tirar nosso direito básico à terra prejudica não só a subsistência, mas nossa identidade: INDÍGENA.

Quem vai ignorar os grupos endinheirados de garimpeiros, expansionistas e reis do gado para garantir os direitos de apenas 900 mil brasileiros? Primeiro, mata-se e rasga-se a identidade, depois abandona-se a recém construída minoria. Como disse uma CEO recentemente: “não dá pra nivelar por baixo”.

Mesmo depois de tanto tempo, a marginalização do indígena, nossa estigmatização, apagamento e destruição sistêmica não dá trégua.

Nada faz sentido; como tanto sofrimento foi facilmente aceito? Não apenas nos tempos antigos, mas na crueldade atual que nem se presta ao disfarce. Trocamos. Pipoca, abacaxi e tamanduá por pandemia. Vidas de anciões por um pouco de ouro na mão daqueles que já o possuem. Isso não é uma troca justa, nunca foi.

Alguns dirão que “a vida é injusta, não há o que se fazer”; eu discordo! Há muito que se fazer, coisas que já deveríamos ter feito, mas ainda podemos. E eu não precisaria escrever algo tão óbvio quanto ‘matar é errado’. Me recuso a aceitar tal mancha na minha “pátria amada”.

Dizem que a situação está melhor do que antes, será? Aqui, a discordância não há de ser calma, como “vamos concordar em discordar” - só somos ouvidos ao gritar de dor. Pouco mudou: apenas encontraram como manipular as informações para justificar os corpos, aumentar animosidades e manter o público tão negligente quanto antes.

Aos anciões e lideranças, assassinato a sangue frio. Quanto às indígenas, ⅓ delas é sexualmente abusada. Até as armas são as mesmas. Assim, se eterniza a dominação para desmoralizá-los. Até o efeito epidemiológico está presente. Era costume esconder trouxas contaminadas nas florestas, dizimando etnias com o “vírus branco”, numa guerra justa apenas no papel.

Atualmente, na pandemia de covid19, frigoríficos que usam mão-de-obra indígena a troco de banana foram focos de dispersão do vírus para as aldeias, bem como garimpos ilegais. Não podemos esquecer da função do gado no período colonial: ocupava espaço e “expandia” o Brasil. Exatamente como hoje. Primeiro vem o fogo, depois o boi, e por último a soja, fazendo do agro o ‘motor’ do país. E aceitamos que alguns gramas de ouro e um punhado de soja valham mais que uma vizinhança inteira?

Note a perversidade; podemos caminhar por qualquer uma das capitais federativas para encontrar diversas homenagens a bandeirantes e todo tipo de assassino. Se uma ou duas tratam de resistência, só existe Tiradentes. Estátuas de genocidas silenciam suas vítimas.

Nossa nação não vai bem. Uma nação construída com sangue e mentiras, mas que se recusa a entender isso, não pode ir pra frente. Nossos grilhões, sob a forma de intolerância e ódio, só acabarão quando os assumirmos.

Acabamos por sair das épocas de navegação com caravelas ao mar, mas continuamos em águas turbulentas.

Ceuci Araruna


¹Ci = mãe Terra. Ligada à afetividade, fartura e vida.

²yby = terra, chão que se pisa.


Print de tela de uma reunião virtual. 3 garotas, duas brancas e uma negra olham com determinação para a câmera. Duas tem cabelo cacheado e a outra, ondulado, além de feições japonesas. O aplicativo tem fundo preto, e atrás das meninas há paredes, mapas, janelas e plantas de ambientes diferentes. Estão todas vestidas de preto em respeito e solidariedade ao genocídio e apagamento indígena.

Descrição: Print de tela de uma reunião virtual. 3 garotas, duas brancas e uma negra olham com determinação para a câmera. Duas tem cabelo cacheado e a outra, ondulado, além de feições japonesas. O aplicativo tem fundo preto, e atrás das meninas há paredes, mapas, janelas e plantas de ambientes diferentes. Estão todas vestidas de preto em respeito e solidariedade ao genocídio e apagamento indígena.


Crônica criada pela equipe "Tropa das Quitérias", de São José dos Campos, SP.

Participaram da equipe Gabriely Di Folco Rocha, Giovana da Cruz Kumakura, e Daniela Mendes Cândido, sob orientação de Diego Alvares Garcia.


Essa crônica foi escrita para a última tarefa da ONHB 2020. Foi um prazer imenso participar disso com todas vocês, cada reunião online e discussão sobre história até não dar mais. É uma honra e um privilégio ter chegado tão longe - a menos de 200 pontos da grande final, representando nossa escola e São Paulo com garras e dentes - ao lado de amigas queridas.

Obrigada por me deixarem publicar isso aqui, por lutarem até o último minuto e honrarem as latinas históricas que representamos na incrível imagem de equipe da Dani. Obrigada, Gi, por garantir que não nos arriscássemos demais nas questões e levantar o astral da equipe. Diego (e Rafael) por nos orientarem semana após semana, Ariane e Duda por lerem a nossa crônica e garantirem que pertencesse ao gênero. Parabéns à Bruna, Mel e Caio, representando o 9° ano na grande final, e obrigada Talita, Martinna e Rafa por discutirem questões conosco. Obrigada, pai e mãe por participarem da pré-ONHB comigo e me apoiarem do começo ao fim. E a você, que além de ler uns 5 minutos de indignação, não pulou os agradecimentos. Espero que tenha gostado. Eu amei.

Obrigada.

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