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  • Foto do escritorGabriely Di Folco Rocha

Sob a capa vermelha

Com ares de Chapeuzinho Vermelho, “Sob a capa Vermelha” foi a história que elevou Mariana Vitória, à época com 19 anos, a escritora. A estudante joseense de Estudos Literários (Unicamp), entregou em 362 páginas uma narrativa profunda, e o sonho de uma nova paixão literária nacional.

O romance introduz naturalmente sua realidade fantástica. O prólogo já nos apresenta, sob a escuridão translúcida das três luas no dia dos Deuses, a tentativa de fuga de Mirah do Manto Rubro, perseguida pela multidão selvagem que fora seu povo. Rainha deposta dos gizamyrianos, povo feroz e unido, ela é forçada a fugir para salvar Rhoesemina, de apenas um ano - primogênita, mas não herdeira.

Mas a horda era implacável. Não se chamavam homens-lobo à toa.

Em Tergaron, ambientação primeira da trama em si, vemos uma situação bastante diferente. A sociedade pacata se assemelha à das monarquias absolutistas europeias, com diferenças pontuais. Para começar, em Tergaron, todos tem pele escura.

E a Rainha é imortal.

Estonteante e há um milênio com rosto juvenil, ela expande os limites de seu território a cada ano. Com seus inúmeros maridos e esposas consortes (ahmirans), constantemente arranjando casamentos e alianças, ela se mantém no poder desde tempos imemoráveis. Afinal, uma mulher imortal não precisa de herdeiros, mas continua tendo-os, de qualquer forma.

Por causa disso, a Tergaron estão subordinados outros três reinos: Ikurian, Dovaria e Almariot. Em todo o mundo somente Gizamyr, terra gelada além mar e último refúgio dos impuros, não pertencia a Viira Viasaara.

A Rainha das Rainhas influenciava (diretamente ou através dos filhos) uma civilização gigantesca, mas religiosamente unificada. Um panteão de 12 deuses garantindo a abundância e união dos seres humanos; a estabilidade política garantida pela imortalidade de sua filha, Viira.

Havia mais uma maneira de manter o equilíbrio: perseguindo os homens-lobo. Purificando aquelas criaturas incompletas ao queimá-las em nuvens de fumaça acres, mas necessárias. Domando-as.

Sendo assim, os 15 anos de existência de Norina eram uma heresia por si só. Um crime à Viira Viasaara e um pecado. Mesmo assim, Nor passou a infância num casebre, oculta do mundo, sem saber da sua natureza profana. Salva pela tola (e autodestrutiva) piedade de uma aldeã, Ros, sua ahma.

Norina já tinha ouvido falar dos Indomados, claro. Observava as cinzas fedorentas sobre a neve. Ouvia os lobos uivarem para as luas, as pessoas comentarem sobre aqueles monstros através das paredes. Durante muito tempo os temeu, imaginando criaturas terríveis e sanguinolentas sempre à espreita. Até o dia (após mais um Dia dos Deuses, quando ela ficava incontrolável) em que sua ahma a mostrou, num vaso d’água, seu reflexo – uma verdadeira Indomada.

Ros era uma camponesa pobre. Tinha sido abandonada pelos pais, criada pelas mulheres de um prostíbulo. Assim, conhecia um pouco da religião dos selvagens (que adoravam as luas – Criadora, Guerreira e Sacerdotisa), apesar de negar qualquer divindade. Costurava para sobreviver, mas após acolher Norina, chegavam mais perto da morte a cada inverno.

E a menina só podia ajudar de casa. Não podia se dar ao luxo de deixá-la sair. Seus cabelos prateados, pele terrivelmente pálida e olhos azuis como só se veem em animais a tornariam facilmente identificável entre os tergarônios negros. Assim, a Indomada jamais viu o sol. Só conhecia o mundo através de histórias da ahma, dos sentidos descomedidos - do olfato à audição, passando pela capacidade de perscrutar lembranças alheias - e de uma eventual permissão noturna para espiar pela janela.

Cresceu sob três regras: 1. Não sair do casebre; 2. Não falar com estranhos ou espiar suas mentes - a mente é um lugar perigoso, e seus dons, quando descontrolados, atuavam como uma janela – dois lados para ver. 3. Tomar cuidado com o lobo dentro de si. Senti-lo e reconhecê-lo, mas não se deixar devorar.

Até que Ros desaparece. Quebrando as regras e estendendo sua consciência até a mãe adotiva, Nor descobre que Viira foi informada da heresia de Ros, aprisionando-a. Reparando na presença estranha e usando a mãe como isca, a Rainha chama a indomada a sua presença.

Nossa protagonista só pensa em salvar Ros, cujo único erro foi a clemência. Porém, Viira apresenta um... acordo. Uma possibilidade de fugir à Doma E de resgatar sua ahma.

Levando-a à presença dos corpos da rainha Mirah e sua filha bebê, Rhoesemina, mortos pelo mar numa fuga desesperada há quase dezesseis anos (mas ainda quentes, conservados por curandeiros reias) a imortal a convence a atravessar o mar e enganar os gizamyrianos. Seus termos são que a menina se passe por Rhoese, adulterando memórias, mas numa atitude “altruísta” não reclame o trono, apenas recomende que o príncipe herdeiro despose Gilia, a primeira princesa; desta forma, Viira terminaria sua conquista, convertendo e salvando as almas do restante do mundo e Nor, por sua vez, ganharia o direito de uma vida nova, com sua ahma de volta.

A partir deste ponto de conflito a história se desenrola.

Mariana desenvolve cuidadosamente alguns personagens secundários. Podemos ver como Gilia, por exemplo, tem anseios similares aos da protagonista: pertencer. Sempre na eminência de ser ofuscada por Ismena, irmã dois anos mais nova, mas disposta a tudo – mesmo que isso signifique ter filhos-monstros ou matar a meia-irmã -, ela cresce longe da mãe, como todos seus filhos. Mas a ama profundamente, e faria quase tudo por ela. Carrega uma fração de sua beleza, mas muito pouco de sua confiança e ambição, olhando para o mar de onde a viu surgir pela última vez com banzo e tristeza.

O amor de Sir Rolthan por um indomado é outro exemplo. Dá uma dimensão mais pessoal ao conflito, é desenrolado de forma orgânica e contribui para a trama ao mostrar como a relação entre os diferentes tipos de humanos se dá por baixo dos panos. Há intencionalidade por trás da maior parte das escolhas da escritora.

É preciso ressaltar que ela não tem medo de matar personagens, e faz isso nos momentos certos, abalando e apaixonando o leitor. É impossível ficar indiferente às guinadas da trama.

Ao longo dela, vemos que a personalidade de Norina é multifacetada e complexa, parecendo, por vezes, conflitante. Seu arco de desenvolvimento é aparente, mas não necessariamente positivo. Apesar das referências, que remetem ao conto alemão Chapeuzinho Vermelho, a história não tem “lobo mau” – muito embora o príncipe Aster inspire o sentimento certo. Os personagens principais em sua esmagadora maioria (Norina, Gilia, Lorde Destrian, sir Rolthan, Viira, Ralf) não são maniqueístas. E sua inclusão nos permite familiarizar com a destruição da guerra e compreender os crimes, falhas e dívidas de ambos os lados.

Sob a Capa Vermelha venceu, mais do que merecidamente, o concurso “Sua história nos 10 anos da galera” em 2017, permitindo que virasse livro no ano seguinte. Tem 362 páginas, distribuídas entre prólogo, glossário, agradecimentos, 37 capítulos e um mapa que complementa muito bem a jornada de Norina.

É uma história excepcional de lançamento, mas com algumas falhas de coesão e andamento. Como o final, um tanto apressado. É interessante que o livro não foca no romance, mas em amor de mãe, cicatrizes e vingança. A autora fez um ótimo trabalho captando a essência dos personagens, extremamente verossímeis, com desejos e medos compreensíveis (somente uns poucos diálogos não soam naturais). O aspecto político e religioso é muito bem trabalhado, juntamente com as palavras de língua inventada. A arte da capa é maravilhosa e, assim como o mapa, complementa o livro delicadamente.

Em suma, a história é empolgante e deixa pouco a desejar. A representatividade e carga de emoção colocadas nela são inspiradoras. Não é um livro leve, mas reflexivo e fantástico.

Hoje, a autora escreve seu segundo livro, em coparticipação com a editora Cabana Vermelha, e compartilha dicas de escrita no perfil do instagram @autora.marianavitória.


Os 12 deuses

Carin - amor e casamento.

Estos - artes, música e entretenimento.

Haexos - morte.

Iatrax - vida; chefe entre os deuses.

Kurios - conhecimento; intercede pelos mestres.

Miandos - flora e colheita.

Nakar - riquezas minerais; fortuna.

Otraxes - animais; protege caçadores e pastores.

Rokhar - virilidade, força e guerra.

Siemes - donzelas; protege a candura e a inocência.

Sjokar - água; protege os rios e mares.

Taílor - trabalho; protege os camponeses.



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